O ninho dourado

 


Corre pela praia de Moledo, com uma alegria esfusiante. Ora apanha uma concha mais exótica, ora uma pedra modelada por mil toques de água. Que linda, esta, cheiinha de cristais que o sol faz rebrilhar! Vai para os bolsos das bermudas, fazer companhia a outros tesouros, misturados com areia miudinha e pedaços de algas sujas, que depois a avó terá de desencantar das costuras mais recônditas, no tanque de lavar. Sabe que alguns vai deitar fora, mas apanha o que lhe causa mais espanto. Vai renovando o stock, à medida que encontra outros mais bonitos. Acabou de descobrir um búzio bem bom. Este tem de guardar. Encosta-o ao ouvido e percebe tantas vozes marítimas, segredos longínquos. Não cabe no bolso. Corre para a avó e deixa-o à sua guarda, com recomendações de cuidado. Que encanto tem pelo mar! Sonha que um dia há de morar junto de uma praia assim, cheia de cor azul contra uma montanha verde. Como aquela tão prodigiosa, pontiaguda, sobre a foz do rio Minho. Mesmo que seja uma montanha espanhola, que importa?

– Tem cuidado, Zé Fernando, não te metas muito no mar!!! – Grita-lhe a avó pela décima segunda vez… para aí!

Está descalço. Deixou os sapatos também junto da avó. Ela é a guarda dos seus tesouros. Está sentada numa rocha, sob um sol de final de manhã, enquanto o observa a correr, como se nunca tivesse visto o mar. É sempre assim quando a avó tem de vir a Viana e o senhor Alípio lhes dá boleia. O mais das vezes, antes de chegar a Viana, o homem tem de parar, basto tempo, junto à praia de Moledo, por causa de uns negócios que ali tem. Ainda por cima pede-lhes desculpa pelo incómodo de esperarem. Bendito incómodo, para o Zé Fernando! A avó não diz nada, envolta em silêncio contemplativo. Apenas espera.

Estamos em finais de julho, plena época balnear, mas está fresco e um ventinho desagradável dança com a areia. Aquela parte da praia está deserta. Um mundo criado só para ele! Mais além avistam as barraquinhas alinhadas dos veraneantes e, um ou outro, em pelota, a imergir na cor do mar. A agua está fria. Ele já experimentou e bem. A avó vê-o tropeçar numa pedra mais avantajada e lança-lhe outra boia:

– Zé Fernando, não corras tanto, tem cuidado… ainda cais!

Volta-se. Vê aquela mulher como uma pincelada escura no meio do areal branco. Ainda é o luto pelo avô. Escura por fora, mas por dentro é feita de luz. A sua tão querida Memé, como lhe chama, com o carinho mais genuíno da infância. Uma mulher mais forte do que a pedra tigresa que acabou de encontrar. É um alicerce. Sorri-lhe, mesmo que saiba que ela nem vê o sorriso, e continua a correr, agora mais devagar, cego de sol. Ao meio do areal lobriga algo colorido como uma papoila na pradaria. Claro que ali não há flores. O que será, pois? Corre para aquela descoberta silenciosa, com a surpresa nos olhos.

Uau, parece um cromo! Será? Só pode! E quem é, quem é? Sim, é um cromo e percebe que é de um jogador do Benfica, com a sua cor de choque vermelha contra a areia branca. Corre mais, apanha-o e saboreia a felicidade de o ver intacto e bom, mesmo que húmido. Volta a face e constata que é do Chalana! Como é que este tesouro está aqui? Intacto e apenas húmido da aragem marítima. Decerto caiu do bolso a algum miúdo traquina que na véspera cruzou o areal. Fica-se a olhar o jogador cabeludo, com o seu bigodão que nem sorriso algum deixaria ver. Bom, este por acaso já o tem na sua caderneta, mas pode sempre trocar com um dos colegas. Talvez com o Vasco que tem dois do Fernando Gomes e ele nenhum. É um admirador do Fernando Gomes, do Futebol Club do Porto! Mais que do Chalana. Mas ter um cromo de reserva é sempre um capital para investir. Ainda ontem se deitou tarde, porque esteve a passar revista à sua caderneta de cromos. É um tesouro. Corre para a avó, mostra-lho e coloca-o ao pé dos sapatos e do búzio.

A avó faz-lhe uma carícia na testa e convida-o:

– Vá, senta-te agora um bocadinho, que já deves estar cansado. Aí a correr tanto!

Ele obedece e encosta a face no ombro da avó. Ela tem um casaquinho de malha, dobrado no colo e o ganapo tateia o bolso à espera de encontrar um daqueles rebuçados de fruta, pequeninos, que amiúde ela traz para apaziguar qualquer tosse súbita. Mas não, hoje não traz.

Nisto ele levanta o rosto e avista uma figura branca ao longe, no meio da praia deserta. Está a olhar para ele e para a avó. Zé Fernando ergue-se, coloca a mão em pala contra a testa para ver melhor. Sente-se atraído por um olhar que mal percebe. Olha a avó e ela faz-lhe sinal para avançar. Ele não hesita. Primeiro devagarinho, depois mais veloz, aproxima-se de quem o vê e o contempla de forma tão doce. O homem – sim é um Homem vestido de branco, ou… arriscaria que é de luz! – faz-lhe sinal para o seguir e começa a caminhar. As suas pegadas frescas desenham-se na areia húmida da maré baixa. Zé Fernando dá passadas rápidas para seguir aquele em cujo olhar ainda pôde contemplar uma promessa. O Homem chegou à praia dos pescadores e mete-se por entre barcos que acabaram de chegar. É uma azáfama ali. Há mulheres com cestos cheios de peixe, que levam para a lota. Homens a encher canastras e a atirar as redes para fora dos barcos. Outros puxam os barcos com o cordame que amarram ao atracadouro. Avista o Homem de branco a passar para lá da lota e não o quer perder de vista, mas um homenzinho, baixo de estatura, com uma careca luzidia onde dois ou três pelos fazem guarda de honra, e um bigode quase como o do Chalana, fá-lo estacar, teimando que deve ser o filho do Álvaro de Eiriz e da…

– Fernanda! Sou, sim senhor! – Responde o Zé Fernando, desejoso de se libertar.

– Ah! Conheci-te, meu malandro. Estás grande! Então não te lembras de mim? Estive o ano passado…

– Lembro, sim senhor… – Mente o catraio, só para deter o palrador.

– Então o teu pai…

– Está na França, com a minha mãe e o meu irmão. Vêm para a semana. Adeus!

Não quis ser deseducado, mas a sua urgência não o deixa demorar. Não pode perder o Homem de branco, como se fosse de luz. Ainda o tinha visto derivar para a estrada. Zé Fernando contorna aquela azáfama, galga as escadinhas que dão acesso à estrada, olha para todos os lados, mas desespera porque já não o vê. Pensa que nunca mais o encontrará, porquanto já não há areia para entender pegadas. Olha o chão e fica aliviado ao detetar vestígios dos pés que vinham cheios de areia molhada. Ali estão as pegadas, desenhadas no passeio batido pelo sol da manhã. Nenhum carro ainda passou. Percebe os passos que as pegadas revelam a passar pelo asfalto e entrarem na mata, esventrada por um caminho de terra batida. Olha para direita, depois para a esquerda, conforme as normas de trânsito, e atravessa a estada, para saborear a frescura da mata. Ali dentro não há areia, mas há poeira e as pegadas continuam a gritar um seguimento. Estão frescas, protegidas pela vegetação densa, como um santuário de abobadas altas, ramos profusos de pinheiros e eucaliptos. O ruído das ondas do mar vai cedendo aos chilreios dos passarinhos. Estes, cruzam o céu e embrenham-se na folhagem, embriagados de canto. Apesar do arvoredo cerrado, uma aura de luz envolve o espaço. Lembra-se da avó, mas incrivelmente não se sobressalta, nem tem pressa de regressar para junto dela antes de encontrar o Homem vestido de branco. Ela incentivou-o a ir, esperará por ele. E o senhor Alípio… por certo ainda se demora.

Mais à frente ouve um ritmar que parece de passos. As pegadas tornam-se de uma cor escura como se estivessem molhadas e modelassem desenhos perenes na poeira solta. Vai seguindo aquele rasto, adentrando-se mais na espessura da mata e repara que as pegadas ficam progressivamente mais coloridas até atingirem uma cor de sangue. Está a olhar para elas quando saem do caminho e entram num restolho de ervas e cascalho. Vai tão admirado que nem se apercebe que também ele está descalço ao entrar numa clareira onde impera uma árvore. Ali os chilreios dos passarinhos tornam-se mais fortes e de uma musicalidade mais harmónica, como se fosse uma sinfonia concertada por um maestro. Ah! Sente que chegou ao destino. Zé Fernando para e olha a árvore mais atentamente. É diferente de todas as outras árvores. Tem folhas pontiagudas e brilhantes, como as das oliveiras, mas é mais alta e mais frondosa. Que espécie de árvore será? Não conhece. Repara que dos ramos caem pingos. Uns são de água, mas outros são de uma cor mais escura, vermelha mesmo. Ao lado da árvore está uma Mulher muito bela, também vestida como se fosse de luz. Sorri para ele e coloca o indicador nos lábios, para lhe recomendar silêncio. Aquele rosto… Zé Fernando acha que conhece aquele rosto de algures e não sabe de onde. Ao olhá-la lembra-se da sua avozinha, a sua Memé, que está no areal à espera, mas que parece também estar ali, em momento tão sublime. A Mulher não diz nada, mas com o dedo indicador aponta para cima, como se o convidasse a subir. Zé Fernando nem quer acreditar. Como ele gosta de trepar às árvores!

Ouve-se um rascalhar de ramos e Zé Fernando pensa se poderá ver o que está no coração da árvore. Olha a Mulher, de rosto benevolente, como a pedir-lhe permissão e ela aponta novamente, a incitá-lo. Aproxima-se e olha para cima, muito mais ávido do que quando descobriu o cromo na praia. Já esqueceu o cromo. Há ramos perto do solo e ele considera que é muito fácil subir. De cima, do meio da folhagem espessa, vem um halo de luz, e ele capta um vislumbre da mesma veste que avistou na praia. Teria aquele Homem subido à árvore? Mas ali, abrigado entre a folhagem densa, quem está é um Menino. O Menino sorri muito para algo que tem à frente dos olhos, embevecido. Mas quando Zé Fernando assoma no sopé da copa o Menino olha para ele e modula com os lábios um oh de espanto. Com claro entusiasmo estampado no rosto, faz-lhe sinais para que suba. Rápido. Depois, tal como a Mulher, coloca o indicador junto aos lábios a recomendar-lhe silêncio e aponta o vulto que está no centro de uma bifurcação de ramos. Zé Fernando repara que a fisionomia do Menino é muito parecida com da Mulher que está de pé, junto ao tronco. Deve ser a Mãe dele. Lembra-se também da sua própria mãe de quem tem tantas saudades.

Fascinado e ávido de curiosidade, agarra-se aos galhos e, com um pulo, está a trepar preste de vigor e leveza. Vai subindo, sempre a olhar o Menino, mais novinho do que ele, de feições encantadoras. À medida que se aproxima, percebe que o Menino aponta para o que parece ser um ninho. Oh! Um ninho. Como ele gosta de ninhos. Sente que pode fazer amizade com aquele Menino e até tornarem-se cúmplices de brincadeiras. Sobe mais. Aquela árvore é curiosa. O tronco é muito grosso, hirto de verticalidade, mas os ramos prolongam-se numa quase perfeita horizontalidade, uns mais grossos, outros mais finos. Já está perto e sente uma felicidade imensa quando se apercebe que é mesmo um ninho, num entrelaçar de fios, como só as aves sabem fazer. É para ele que o Menino olha, a sorrir muito. Intercala o olhar para o fixar no Zé Fernando que continua a progredir no tronco, com uma facilidade imensa.

Também na aldeia ele trepa às árvores e a avó até tem de lhe ralhar. Está sempre a recomendar-lhe que tenha cuidado para não cair e não tocar nos ninhos. E muito menos nos ovos que eles albergam. “Os ninhos são sagrados!” diz-lhe ela, “pois até Jesus Nosso Senhor louvou o Pai do Céu pelas aves que Ele alimenta!” Mas o Zé Fernando, ainda que tenha escrúpulo por cumprir os preceitos da sua Memé, percebe muito bem de ninhos. Pelo formato sabe que não pode ser de pardal, pelo tamanho sabe que não pode ser de pintassilgo. Será de melro, que é em forma de cálice e tem uns filamentos mais pronunciados? Este é em forma de cálice, mas os seus filamentos são dourados. Nem de cuco, pode ser. Estas aves procriam na primavera e onde vai já a primavera! Não pode ser um ninho abandonado, pois algum conteúdo tem de ter, a avaliar pelo modo como a criança o olha. É um ninho dourado. Os filamentos parecem mesmo de ouro como aquele de onde se fazem os corações de Viana e os fios. É todo brilhante e compacto. Serão ovos, será outro qualquer tesouro, o que ali se acolhe?

Zé Fernando chega junto da bifurcação e olha o Menino, pedindo permissão para derramar o seu olhar para dentro daquela taça que protege uma surpresa. O Menino acena-lhe que sim. Mas eis que, no momento de olhar para dentro, sente o seu corpo sacudido por umas mãos de carinho:

– Acorda, Zé Fernando, que o senhor Alípio já está ali!

O rapaz acorda, num misto de contrariedade e alegria. Calça os sapatos e corre com a avó para dentro do carro do senhor Alípio. O carro arranca, mas ele ainda vai a olhar para trás. Afinal foi só um sonho, mas ele sente-o tão real. Dois ou três quilómetros volvidos e o Zé Fernando, ao mexer-se no banco, toma consciência de que tem os bolsos cheios de pedras. Lembra-se que se esqueceu do cromo e do búzio na praia. Vai para falar, mas a avó conversa formalidades com o senhor Alípio, que nunca na vida voltaria atrás para recuperar os tesouros de uma criança.

Não vale a pena falar. Já nem se importa com o cromo nem com o búzio. Deitará as pedras fora quando chegar a Viana. Não viu o conteúdo, mas sente uma alegria tão grande porque sabe que um dia olhará para dentro do ninho dourado, em forma de cálice, e descobrirá o tesouro que ali repousa.


Em homenagem a Monsenhor José Fernando Caldas Esteves, 

nos 25 anos de Ordenação Sacerdotal, 26 de julho de 2023


Ir. Maria José Diegues de Oliveira, sfrjs


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